domingo, 22 de julho de 2007

12 DE JUNHO


A manhã foi tão conturbada que nem se lembrou que dia era aquele. Chegou à escola ligeiramente atrasada. A turma já estava à sua espera, aflita. Após dois minutos de papo e dez para colocá-los em fila, seguiram para o pátio.
Ao dobrar a esquina, pode avistar, ainda de longe, um imenso buquê de rosas vermelhas, acomodado em uma improvisada jarra, bem em cima do caixote com os materiais que usa em suas aulas de Educação Física. Bem à vista, um pequenino envelope branco repousava entre as flores.
O passo foi desacelerando enquanto os neurônios se punham a funcionar:
– Será? – pensou.
Verificou todas as possibilidades, incluindo a de que poderia ser destinado à outra professora de Educação Física.
– Mas se fosse para ela, que chegou antes de mim, não estaria mais aqui...
Nesse meio tempo, imediatamente atrás dela, um coro constituído de exatamente 25 vozes com, no máximo, cinco anos de vida, exclamava:
– Tá namorando, tá namorando!
A associação foi instantânea. Lembrou do pivô do seu atraso, da sua manhã conturbada, da sua noite de insônia e de sua semana infernal, concluindo sem nenhuma hesitação:
– Não é.
O olhar, até então cativo da meditação, bandeou-se para a janela da cantina, a poucos metros do caixote, e enxergou ali uma promissora possibilidade. A certeza veio logo após o gracejo que fez em resposta às crianças, num volume propositalmente mais alto do que o habitual:
– É mesmo! Tem gente que está namorando! Quem será? Quem será que recebeu esse lindo buquê de flores?
Um enorme sorriso iluminou o rosto suspeito da cantineira, denunciado segundos atrás pela fisionomia extática. Respirou fundo e aliviada: estava decifrado o enigma! A felizarda veio logo em seu socorro para liberar o caixote que precisava ser aberto, recolhendo e carregando consigo o buquê.
O alívio abriu espaço para o orgulho, sentia-se esperta e perspicaz:
– Uau, matei a charada em pouquíssimos segundos!
Mas apenas algumas frações deles foram necessárias para sufocar o orgulho – Quanta inteligência... Ficar feliz por não ter recebido flores! – e uma pontada de inveja foi a gota d’água para a melancolia se estabelecer:
– Mas que droga! Nem no dia dos namorados ele me manda flores...
Num suspiro, conteve uma lágrima rebelde e decidiu que deveria estar contente pelo desfecho do caso.
– Pelo menos, não paguei um mico na frente das crianças, me comovendo com um buquê que não era para mim.
Dos males, o menor. Quanto aos menores, algumas bolas, cordas e petecas foram o suficiente para enterrar o assunto.

sábado, 21 de julho de 2007

Peixe-mico


Era um daqueles amadores da arte da pesca. Amava tanto que empregou grande parte de sua renda em equipamento profissional, a despeito da opinião da esposa.
Aceitou o convite para pescar em uma lagoa criatória superpopulada, no município de Iapu, por mera consideração ao desesperado proprietário. “Com peixes sobrando, assim, não tem nem graça...” – comentou com o amigo e parceiro de pescaria.
Mas não dispensou a parafernália: molinetes, puçás, iscas eletrônicas, sonares etc.
A lagoa não era pequena. Trezentos metros de largura por quinhentos de comprimento.
Mal entraram na água e sentiram os peixes beliscando. Não as iscas, porque não haviam preparado as varas de pesca, mas seus pés, suas pernas, suas coxas. E, antes que beliscassem outras partes, saíram da lagoa e escolheram uma elevação do terreno, à beira, para iniciar sua missão.
Havia tantos peixes que nem precisavam de varas. “Pô, isso não é pescaria!” – reclamou irritado – “Parece mais colheita...”
Tirou a vara da água, determinado a acrescentar alguma dificuldade na tarefa e viver um mínimo de emoções. Preparou um lançamento longo, vislumbrando alguns metros à frente, em busca de algum peixe teimoso. Cuidadoso que era, olhou pra trás, para um lado e para o outro, certificando-se da inexistência de desatentos na zona de risco do lançamento. Acordou o profissional adormecido dentro de si e executou com arte, elegância e maestria o gesto de lançamento.
Não fosse a adrenalina excessiva produzida pela irritação de minutos antes, seria impecável. Mas essa força adicional conduziu a linha por sobre a lagoa, ultrapassando a margem, o gramado em volta, a cerca da propriedade, a estrada marginal à cerca, o bosque marginal à estrada e o anzol foi enganchar-se numa árvore indefinível, dada a distância.
Não se atreveu a balbuciar a palavra que pensou, mas estava estampada em seu rosto.
Após alguns minutos de inércia e consternação, o amigo sugeriu: “Puxa a linha, quem sabe você pescou um mico...”


A nota, Maestro!


Antes mesmo do namoro, ela descobriu o quanto o marido apreciava a música. E, por amor, aprendeu a apreciar a música dele. Mesmo quando a melodia pedia um acorde de Dó e ele teimava em tocar um Mi, ela sorria, enternecida e apaixonada.
Mas não foi a música que o marido escolheu por profissão. Sorte dela e da população fabricianense. Com exceção dos moradores da rua Marataízes, onde o casal residia e onde o marido deixava fluir sua veia musical, com seus Mis substituindo os Dós.
Graças a esse grande amor e devoção, conseguiu sorrir ao saber que o dinheiro destinado à entrada da sonhada casa de 200 m² no bairro Santa Helena, foi utilizado para aquisição de um teclado Roland sofisticadíssimo. “Você precisa ver, amorzinho! Com esse teclado eu vou fazer maravilhas!” – justificava o marido, entusiasmado.
Num suspiro contido e disfarçado, ela imaginava como seriam maravilhosos os Mis do novo teclado, ecoando pelos 90 m² do modesto apartamento.
Grande foi sua surpresa e alegria em ouvir Dós ao invés de Mis que substituíam Dós. Ela não acreditava! Beliscava-se toda e não estava sonhando. Era ele, completamente absorto no teclado, executando Valsa Brasileira, Trem Caipira e até Luíza, de Tom Jobim! Todos os acordes estavam perfeitos e a execução, impecável.
“Que maravilha! – pensava consigo mesma – Era esse então o problema dele, o teclado!”
Daí em diante, admiração e orgulho substituíram a tolerância apaixonada. Não cansava de ouví-lo. Esquecia-se da vida. Perdia-se em devaneios. Enternecida, nem percebia quando ele tirava as mãos do teclado e a música continuava.
Mas o curioso caçula não tardou a perceber e logo quis saber da mãe como isso era possível.
Parou de flutuar quando constatou que as mãos do marido nem sempre acionavam as teclas. Não tardou a despencar das nuvens, quando ele afastou-se do teclado para completar o uísque e a música prosseguiu, soberana.
Mesmo sem compreender o que estava acontecendo, o amor e a devoção impediram-na de tecer qualquer comentário. Mas algo a inquietava: “Por que ele omitiu este detalhe? Por que permitiu que eu acreditasse que era ele quem tocava?”
Sentia-se enganada, traída. Amor e devoção, porém, recusavam-se a aceitar tal fato. “Vai ver é ele mesmo quem toca e o teclado memoriza os acordes...” – refletia. “Afinal, há tantos recursos fantásticos nessas inovações tecnológicas...” – resignava-se.
Um grama de dúvida foi o suficiente para o assunto vir à tona durante a consulta de rotina com o médico da família, contrabaixista amador e companheiro do marido em suas experiências musicais.
Atreveu-se a perguntar: “Fulano, você percebeu o progresso musical do Sicrano após a compra do novo teclado?”. Diante da resposta afirmativa, prosseguiu: “Um bom teclado é capaz de fazer uma pessoa progredir tanto assim, deixar de trocar Mis por Dós?”
Um enigmático sorriso não confirmou o “sim” pronunciado por ele. E desencadeou a fatídica pergunta: “É ele mesmo quem toca as músicas?”
O compromisso ético do amigo com a verdade foi maior do que do amigo com o amigo: “Não. É um disquete, a partir do qual o teclado executa as músicas nele gravadas.”
Ela sentiu seu mundo ruir. Sentimentos confusos perturbaram-na por alguns segundos. Indignada, desabafou: “Mas então, para que ele se senta diante do teclado? Que papel ele desempenha, já que as músicas estão prontas no disquete? Papel de bobo?”
O médico não titubeou em defender o amigo: “Ora, ele aciona uma tecla e define em qual tom a música vai tocar. O papel dele é de Maestro, pôxa!”“Maestro?” – pensava ela, ainda confusa. “Sim, Maestro!” – pensava em seguida, já se entusiasmando. “Mas é claro, Maestro!” – exclamou cheia de admiração e orgulho, feliz com seu mundo reconstruído por sua devoção apaixonada e surda.