sábado, 21 de julho de 2007

A nota, Maestro!


Antes mesmo do namoro, ela descobriu o quanto o marido apreciava a música. E, por amor, aprendeu a apreciar a música dele. Mesmo quando a melodia pedia um acorde de Dó e ele teimava em tocar um Mi, ela sorria, enternecida e apaixonada.
Mas não foi a música que o marido escolheu por profissão. Sorte dela e da população fabricianense. Com exceção dos moradores da rua Marataízes, onde o casal residia e onde o marido deixava fluir sua veia musical, com seus Mis substituindo os Dós.
Graças a esse grande amor e devoção, conseguiu sorrir ao saber que o dinheiro destinado à entrada da sonhada casa de 200 m² no bairro Santa Helena, foi utilizado para aquisição de um teclado Roland sofisticadíssimo. “Você precisa ver, amorzinho! Com esse teclado eu vou fazer maravilhas!” – justificava o marido, entusiasmado.
Num suspiro contido e disfarçado, ela imaginava como seriam maravilhosos os Mis do novo teclado, ecoando pelos 90 m² do modesto apartamento.
Grande foi sua surpresa e alegria em ouvir Dós ao invés de Mis que substituíam Dós. Ela não acreditava! Beliscava-se toda e não estava sonhando. Era ele, completamente absorto no teclado, executando Valsa Brasileira, Trem Caipira e até Luíza, de Tom Jobim! Todos os acordes estavam perfeitos e a execução, impecável.
“Que maravilha! – pensava consigo mesma – Era esse então o problema dele, o teclado!”
Daí em diante, admiração e orgulho substituíram a tolerância apaixonada. Não cansava de ouví-lo. Esquecia-se da vida. Perdia-se em devaneios. Enternecida, nem percebia quando ele tirava as mãos do teclado e a música continuava.
Mas o curioso caçula não tardou a perceber e logo quis saber da mãe como isso era possível.
Parou de flutuar quando constatou que as mãos do marido nem sempre acionavam as teclas. Não tardou a despencar das nuvens, quando ele afastou-se do teclado para completar o uísque e a música prosseguiu, soberana.
Mesmo sem compreender o que estava acontecendo, o amor e a devoção impediram-na de tecer qualquer comentário. Mas algo a inquietava: “Por que ele omitiu este detalhe? Por que permitiu que eu acreditasse que era ele quem tocava?”
Sentia-se enganada, traída. Amor e devoção, porém, recusavam-se a aceitar tal fato. “Vai ver é ele mesmo quem toca e o teclado memoriza os acordes...” – refletia. “Afinal, há tantos recursos fantásticos nessas inovações tecnológicas...” – resignava-se.
Um grama de dúvida foi o suficiente para o assunto vir à tona durante a consulta de rotina com o médico da família, contrabaixista amador e companheiro do marido em suas experiências musicais.
Atreveu-se a perguntar: “Fulano, você percebeu o progresso musical do Sicrano após a compra do novo teclado?”. Diante da resposta afirmativa, prosseguiu: “Um bom teclado é capaz de fazer uma pessoa progredir tanto assim, deixar de trocar Mis por Dós?”
Um enigmático sorriso não confirmou o “sim” pronunciado por ele. E desencadeou a fatídica pergunta: “É ele mesmo quem toca as músicas?”
O compromisso ético do amigo com a verdade foi maior do que do amigo com o amigo: “Não. É um disquete, a partir do qual o teclado executa as músicas nele gravadas.”
Ela sentiu seu mundo ruir. Sentimentos confusos perturbaram-na por alguns segundos. Indignada, desabafou: “Mas então, para que ele se senta diante do teclado? Que papel ele desempenha, já que as músicas estão prontas no disquete? Papel de bobo?”
O médico não titubeou em defender o amigo: “Ora, ele aciona uma tecla e define em qual tom a música vai tocar. O papel dele é de Maestro, pôxa!”“Maestro?” – pensava ela, ainda confusa. “Sim, Maestro!” – pensava em seguida, já se entusiasmando. “Mas é claro, Maestro!” – exclamou cheia de admiração e orgulho, feliz com seu mundo reconstruído por sua devoção apaixonada e surda.


2 comentários:

Dan Smükke disse...

Danilo Araújo, Brasilia DF

DANET-DANILO.BLOSPOT.COM

Dan Smükke disse...

Danilo Araújo, Brasilia DF

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